O objetivo deste artigo é discutir a relação entre o Estado e a política democrática no Brasil, bem como historiar sobre a construção da nacionalidade brasileira num período de cerceamento das liberdades individuais (1937-1945) e de posterior transição política nacional (1946-1950).
O Estado Novo formalmente instituído em 10 de Novembro de 1937 por Getúlio Vargas caracterizava-se pela extrema centralização política, repressão a partidos políticos oposicionistas e fortalecimento da presença do Estado em todas as esferas da vida nacional. Esse modelo governamental não foi um projeto idealizado exclusivamente por Vargas, mas contou com apoio da grande maioria das forças oligárquicas estaduais e da Igreja Católica, além da participação ativa dos militares e grupos burocráticos que defendiam o estabelecimento de um regime autoritário, estável e capaz de modernizar o Brasil.
Na verdade, Vargas nunca apresentava entusiasmo pela democracia, pelo menos, pela democracia liberal, que ele associava à política semi-representativa, mas fundamentalmente oligárquica da primeira República. “Ideólogos e propagandistas do Estado Novo se referiam ao regime como democracia nova, autêntica ou, até mesmo, democracia autoritária” (BETHELL , 1996, p.72-75). A existência de órgãos como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável pela legitimidade do regime perante a opinião pública, o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) e o fortalecimento do Estado central revelam e confirmam a fragilidade do sistema político e a característica autoritária do Estado brasileiro. Entretanto, segundo Raymundo Faoro, essa força e a onipresença do Estado se justifica pelas origens burocráticas e patrimoniais dos portugueses e pela continuidade entre o poder colonial e o Brasil independente, que garantiu ao país a integração de um enorme território. (FAORO , 1998)
A partir da promulgação da Constituição de 1934, o Brasil apresentava sinais que iria viver um regime democrático, não fossem as tendências golpistas de Vargas, com apoio de setores situados no interior do governo, como por exemplo, o Exército. Na verdade, o fantasma do comunismo que progredia assustadoramente na Europa impulsionado pela Revolução Russa de 1917 abriu caminho a uma repressão sem proporções aos grupos de esquerda no Brasil avessos a tais pretensões do presidente.
Ao mesmo tempo em que efetuava a repressão, o governo ampliava o acesso dos trabalhadores a direitos sociais e arquitetava um obscuro plano, denominado Cohen, o qual denunciava uma tentativa de insurreição comunista. Em 1937, cerca de um ano antes da realização do pleito eleitoral, tropas da polícia militar cercaram o Congresso Nacional e não permitiram a entrada de congressistas. Começava assim o Estado Novo, com repressões aos movimentos populares e aos comunistas, e com o apoio incondicional da classe dominante, que entendia o golpe como algo necessário para a manutenção da ordem e preservação dos bons costumes.
Desta maneira, o governo não só negava os princípios democráticos e se pactuava com a burguesia nacional, como também implementava uma política trabalhista que visava suprir materialmente as necessidades da população e criar uma imagem positiva de Getúlio Vargas como o pai dos pobres e protetor dos trabalhadores. Vale ressaltar que o regime inaugurado em 1937 não se dirigiu apenas aos trabalhadores na construção de sua imagem, mas tratou de formar uma ampla opinião pública a seu favor, pela censura aos meios de comunicação e difusão de um pensamento populista e assistencialista, capaz de alienar a grande massa brasileira. Arquitetado para durar vários anos, o Estado Novo durou apenas oito, devido às divergências existentes no interior do governo, ao cenário político internacional marcado pela Segunda Guerra Mundial e ao fracasso de regimes totalitários europeus como o nazismo e o fascismo.
A partir desse quadro, o governo enfrentou diversas pressões pela implantação de uma sociedade democrática, mas justificou a continuidade da ditadura pela existência da guerra, e ao mesmo tempo, prometia realizar eleições quando a paz retornasse. Por sua vez, os planos continuístas de Vargas foram interrompidos após a vitória dos Aliados no segundo conflito mundial, possibilitando assim, a corrosão das estruturas autoritárias do Estado Novo e, desta forma, havia mais uma vez, a sinalização para uma possível “redemocratização” da sociedade brasileira, desejada por amplas camadas populacionais.
Por outro lado, devido a enorme popularidade de Vargas, vários grupos, e sobremaneira, as classes trabalhadoras, defendiam a sua continuidade no poder. Entretanto, foi na parte referente à criação do Estado e da nação que uma geração de intelectuais favoráveis a Vargas afirmavam em 1945, que o regime implantado a partir de 1930 teve pelo menos, o papel de fortalecer o Estado nacional e o próprio sentimento nacionalista, algo que era a grande preocupação dos intelectuais, que achavam que organizar a nação era uma tarefa urgente, que cabia as elites, mas também à intelectualidade brasileira, que dentro das sociedades, tinham a responsabilidade pela transmissão de valores morais, éticos, e nacionalistas. Cabia aos intelectuais serem os guardiões e difusores dos valores sociais e a função de unir governo e povo, ou seja, ser a voz da sociedade (Cf. PECAUT, 1990). A Revista Cultura Política – órgão oficioso do regime estadonovista-, por exemplo, foi utilizada, por essa intelectualidade, como um importante espaço de defesa do governo Vargas e canal de difusão do projeto de construção da nacionalidade.
Mas na verdade, esse governo, caracterizado pelo autoritarismo e populismo, foi responsável por um dos períodos mais nebulosos da História política brasileira. Ao final da Segunda Guerra Mundial, momento em que várias nações européias defendiam um modelo político democrático, Vargas fez algumas reformas em sua linha política nacional, a fim de dar uma nova roupagem ao governo e abrir possibilidades de sua continuidade no poder. Para fortalecer o ideário democrático e se adaptar a nova conjuntura política do pós-guerra, ele tomou algumas medidas de impacto político, econômico e social, como a decretação da anistia aos presos políticos, retomada de relações comerciais com a URSS, permissão da livre associação em partidos políticos e relacionamento pacífico com as forças democráticas do país.
Mas, até que ponto podemos afirmar que a sociedade brasileira do período pós-guerra vivenciou uma redemocratização nacional no sentido mais amplo? Vale ressaltar que o termo redemocratização é alvo de críticas por parte da historiografia preocupada com esse período, uma vez que a repressão e centralização política continuaram existindo no restante do governo Vargas e até mesmo em todo o período Dutra.
Segundo Bethell, a “redemocratização não significaria a ruptura com o Estado Novo, não houve ruptura de poder político, pois Vargas e os militares controlavam o aparato estatal (prefeitos, polícia e o judiciário) e esse estado de coisas continuou a existir” (BETHELL, 1996, p.74), porém de forma mais branda, com o novo presidente eleito em Dezembro de 1945, o ex-ministro da Guerra do Estado Novo, Eurico Gaspar Dutra.
Nos círculos conservadores, costumava-se associar o governo Dutra a legalidade, mas muitas vezes esse legalismo foi esquecido, e práticas autoritárias foram reproduzidas no “governo democrático” que se inaugurara, como por exemplo, a publicação do Decreto-lei 9070/46, que proibia o direito de greve. Pressionado por amplos setores da sociedade, Dutra promulgou a Constituição de 1946, que apresentava uma característica democrático-liberal estabelecendo o Brasil como uma República federativa, com as atribuições da União, Estados e municípios definidas, bem como, fixando as atribuições dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Aspázia Camargo (CARMAGNANI, 1993), ao analisar o nacionalismo e a instabilidade política brasileira, lança os olhos sobre esse período e afirma: “... o ideário liberal influenciará de maneira decisiva na Constituição de 1946, que restaura o regime federal herdado da República Velha, preservando-se assim, as principais conquistas trabalhistas, o nacionalismo e o corporativismo”. Apesar desses elementos, os dispositivos constitucionais que definiam o princípio liberal-democrático foram ignorados por Dutra. Na verdade, o período de transição do Estado Novo para uma sociedade supostamente democrática foi de amenização da repressão, mas “permeado ainda, por uma forte presença estatal e um clima de intolerância anticomunista, reflexo da Guerra Fria que se despontava a nível internacional” (POMAR, 2002, p.20-25).
Na verdade, a democracia aconteceu, mas quem a controlava eram os sustentáculos do Estado Novo, revelando-a assim, limitada e antipopular. O historiador Nelson Werneck Sodré assim definia esse momento: “o momento pós 1946 foi o novo Estado Novo com disfarce constitucional” (SODRÉ, 1986, p.291)
A situação do Brasil no ponto de vista político é o mesmo desde a sua fundação, não houve uma “ampla liberdade democrática” após a Independência do país, nem com a Proclamação da República, nem com a República Velha, e até mesmo nos anos posteriores ao Estado Novo. A população permaneceu excluída das decisões políticas e relegada a receber os favores das elites nacionais, e por assim ser, não há sentido falar em redemocratização da sociedade ou democracia no período imediatamente posterior a 1945 devido à permanência de estruturas políticas, econômicas e sociais até então presentes no governo discricionário do Estado Novo.
Estado Novo, nação e nacionalismo.
A implantação do Estado Novo possibilitou a criação de importantes bases para conferir legitimidade às idéias de unidade e harmonia social, intervencionismo econômico e centralização política em torno da figura de um líder populista e carismático. Todavia, entender o processo de construção de identidade nacional e do nacionalismo em uma sociedade é uma atividade complexa, uma vez que o conceito de nacionalismo é muito amplo, bem como suas interpretações. Para Hobsbawn, a nação pode ser entendida por dois ângulos: o objetivo e o subjetivo. No caso objetivo, a nação possui indivíduos que compartilham a mesma língua, idéias, costumes, religião, cultura, etc. No caso subjetivo, possui indivíduos que compartilham uma idéia de pertencimento que ultrapassa os aspectos objetivos, fazendo com que essa sociedade crie um sentimento de unidade que não se explica apenas por costumes, territórios, culturas ou línguas em comum (HOBSBAWN, 1990).
É bom lembrar, que o conceito moderno de nação surge com o processo de Revolução Francesa, onde a Constituição de 1793 define como individuo aquele tem direitos políticos, ou seja, a concessão da cidadania está atrelada ao caráter político nesta sociedade, e sendo assim, o Estado surge como instrumento capaz de unificar os elementos necessários para a constituição da nação. Por sua vez, ao denominar o Estado como instrumento de opressão e a serviço da burguesia, o marxismo não acredita na existência da nação, condenada ao fracasso por ser produto característico do capitalismo e por apresentar produtos políticos (Estado) e econômicos (relações). “O marxismo aponta para o fim da História, e sendo assim, o Estado-nação só teria condições de existência se apresentasse condições de auto se sustentar.” (BLAS GUERRERO, 1984, p.105-128).
Já para Norberto Bobbio, “a nação é concebida como um grupo de pessoas unidas por laços naturais e, portanto eternos. Esses laços naturais apresentam inicialmente as idéias de raças, seqüenciados pelas características em comum como a língua, costumes, religião e território”. (BOBBIO, 1991, p. 800-803). Assim, o nacionalismo é visto como uma ideologia unificadora, elaborada intencionalmente para garantir a paz e a coesão entre povo e Estado.
Certamente, “é muito recente a invenção histórica da nação, entendida como Estado-nação, definida pela independência ou soberania política e pela unidade territorial e legal. Sua data de nascimento pode ser colocada por volta de 1830” ³(CHAUI, 2000, p. 16), e esse processo demorou ainda mais para se delinear no Brasil, dado as suas características escravagistas e colonialista do passado².
É a partir do Estado Novo (1937-1945) que a idéia de nação e nacionalidade começa a se delinear e ganhar espaço com mais substancialidade no Brasil. Para tanto, os meios de comunicação foram utilizados pelo regime como instrumento de propaganda e doutrinação política e social, por meio de intervenções e compras de jornais e rádios e a manipulação das massas através da transmissão do programa Hora do Brasil (este apresentava uma finalidade cívica, informativa e cultural). O programa enaltecia as belezas naturais, os símbolos nacionais e o patriotismo, rememorando os feitos gloriosos do passado, além de exaltar a figura paternalista do líder nacional, o presidente Vargas. Durante esse período tentou-se sufocar a idéia de luta de classes e difundir a idéia de cooperação entre capital e trabalho sob a orientação e atuação sistemática do Estado.
A construção da nacionalidade brasileira ocorreu de forma tardia e singular. O Estado Novo, através de sua excessiva valorização dos símbolos nacionais, profusão do sentimento nacionalista, paternalismo e centralização política contribuiu para que essa idéia se sedimentasse no Brasil. Em seu artigo intitulado, Propaganda política e construção da identidade nacional coletiva, Maria Helena Capelato discute os significados de uma nova cultura colocada em prática a partir de 1937 e aborda as formas de construção da identidade nacional coletiva através da educação, trabalhada em um sentido doutrinário. “O golpe de 1937 e o Estado Novo eram justificados pela necessidade de salvar o Brasil contra os inimigos, especialmente os comunistas, salvar o Brasil das oligarquias decadentes e construir um país novo e próspero” (CAPELATO, 1996, p. 342).
Em suma, os defensores do Estado Novo acreditavam que somente através do Estado nacional o Brasil alcançaria o desenvolvimento, deixaria para trás o regime liberal e manteria a ordem e o progresso, a união territorial, a paz, o equilíbrio e acima de tudo a dominação sobre as massas. Como afirma Capelato, o “Estado Novo utilizou elementos simbólicos e do espetáculo do poder (típico de regimes totalitários europeus) para conseguir a legitimação e apoio da sociedade” (Idem. p.344), a fim de enaltecer o nacionalismo, substituir a democracia liberal por uma democracia social, sem esquecer é claro, da exacerbada intervenção estatal. Afinal de contas, “o Estado precisava não só dominar os cidadãos como também mobilizá-los e influenciá-los a seu favor. Precisava dos símbolos, de uma religião cívica e do patriotismo” (CHAUI, 2000, p. 18).
Bibliografia
BETHELL, Leslie; ROXBOROUGH, Ian. América Latina entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1996.
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 1997.
CAMARGO, Aspázia. La federación sometida. Nacionalismo desarrolista e inestabilidad democrática. IN: CARMAGNANI, Marcelo (coord.). Federalismos latino-americanos: México/Brasil/Argentina. México: FCE, 1993.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Propaganda política e construção da identidade nacional coletiva. In: Revista Brasileira de História. v. 16, nº 31 e 32, São Paulo,1996.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
____________.Nações e nacionalismo desde 1780: Programa, mito e realidade. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1990.
PÉCAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1990.
POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Democracia Intolerante: Dutra, Adhemar e a repressão ao Partido Comunista (1946-1950). São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial do Estado, 2002.
SODRÉ, Nelson Werneck. Do Tenentismo ao Estado Novo: Memórias de um soldado. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.
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