domingo, 7 de setembro de 2014

O FIM DA PRIMEIRA GUERRA - OU O ENSAIO DA SEGUNDA



Durante a maior parte dos mais de quatro anos em que o planeta se viu engolfado na mais cáustica batalha de sua história, a Alemanha esteve sempre um passo adiante de seus oponentes. Não foram poucas as vezes que o alto comando germânico, com absoluta propriedade, pensou estar próximo de celebrar o triunfo definitivo contra a aliança de seus férreos antagonistas. Parecia que Grã-Bretanha, França e Rússia, mesmo abraçadas, seriam incapazes de conter o inigualável ímpeto ofensivo tedesco. Nem sequer o anúncio da entrada dos Estados Unidos nas hostilidades refreou os ânimos dos oficiais alemães, confiantes no magnífico poderio de sua máquina de guerra. Sem dúvida, a Alemanha ofereceu inúmeras demonstrações de seu estarrecedor colosso militar. E, mesmo rodeada por aliados que se revelariam pouco resilientes, ao final das contas, quase garantiu a vitória. Quase.

No último dia 11 de novembro, consolidou-se a arrebatadora virada aliada verificada nos últimos meses no teatro de operações da Grande Guerra. Com a assinatura do armistício entre as delegações beligerantes, chegam ao fim as hostilidades que consumiram pouco mais de 4 anos e três meses do planeta. Quase 10 milhões de vidas foram perdidas na carnificina mundial. Mais de 20 milhões de militares foram feridos. Em estimativa que certamente será afinada em breve, foram gastos mais de 249 bilhões de dólares na batalha. Exaurida, a Alemanha não teve outra opção senão capitular, sob termos que imputam inassimilável revés a Berlim. Afinal, quando maior a altura, maior o tombo.
Falsa esperança – No início deste ano, uma derrota germânica parecia fora de questão. A retirada da Rússia dos combates possibilitou ao comandante Erich Ludendorff deslocar tropas da frente Oriental para a Ocidental e planejar com perícia a irresistível ofensiva que levaria a Alemanha à vitória, antes mesmo da chegada dos americanos. Paris jamais havia sido um objetivo tão real. Mas as três principais ofensivas alemãs do primeiro semestre – Michael, Georgette e Blücher-Yorck – repetiram um padrão que trazia prenúncios sombrios para Ludendorff. Inícios arrasadores, como no episódio da virtual destruição do Quinto Exército britânico em apenas três dias, na ofensiva Michael, eram seguidos pela falta de punch no momento de conquistar os objetivos da operação. Nas três vezes, os alemães foram repelidos e encerraram, frustrados, as ofensivas. A exaustão chegava à Alemanha.
Três anos e meio de batalhas levam a isso, como bem sabiam as igualmente depauperadas Grã-Bretanha e França. Estas, contudo, ainda tinham a retaguarda do apoio material americano. Mais importante, as duas potências aliadas europeias também sabiam que suas perdas humanas, em que pese terríveis, seriam supridas com a chegada de milhões de soldados dos Estados Unidos, já em plena travessia do Atlântico. Os germânicos, portanto, tinham pressa – mas já não podiam vencer seu próprio esgotamento, quanto mais competir com um novo e robusto oponente. As duas últimas ofensivas tedescas, Gneisenau e Marne-Reims, em junho e julho, foram uma pálida lembrança do poderio do orgulhoso e brioso exército de Berlim. Bebedeiras, deserções e saques disseminados indicavam que a balança começava a pender para o outro lado.
Nação ferida – Diante dos inequívocos indícios de fadiga da Alemanha, o supremo comando aliado, sob a firme liderança do marechal francês Ferdinand Foch, preparou uma série de contra-ofensivas. Cada uma delas teve objetivos claros, limitados e específicos, visando recuperar territórios conquistados pelo oponente nos primeiros meses desde 1918. Levadas a cabo entre julho e setembro, foram executadas com maestria, sempre com rigor estratégico, exemplar disciplina e superioridade numérica, e impuseram aos tedescos não apenas derrotas militares como também uma pressão insuportável. No Marne, em Amiens, em Bapaume, em Saint Mihiel – no qual o recém-ativado Primeiro Exército dos Estados Unidos entrou em ação – ou em Argonne, a demonstração de superioridade dos aliados era inconteste, vencendo focos de resistências de setores ainda valentes do exército germânico.
No final de setembro, o colapso definitivamente se avizinhou da Alemanha. A Linha Hindenburg – o sistema de fortificações alemãs na França – foi rompida entre Cambrai e Saint Quentin; a derrota na Quarta Batalha de Ypres ameaçou as posições germânicas na costa da Bélgica. Novas ofensivas aliadas em outubro e uma situação política interna explosiva colocaram a Alemanha contra a parede; ciente da irreversibilidade dos fatos, a nação ferida começou a negociar um armistício.
Ao mesmo tempo, longe da Frente Ocidental, seus aliados começavam a desmoronar, abandonando o barco em acordos individuais com os gigantes ocidentais. A Bulgária, derradeiro país das Potências Centrais a entrar nas hostilidades, foi a primeira a deixá-las, em acordo datado de 29 de setembro. A Turquia, há muito incapaz de suportar o consumo voraz de recursos exigidos pela guerra de longa duração – com mais de 1,5 milhões de baixas, seu exército era um sexto da força inicial –, abandonou o conflito em 30 de outubro de 1918. O império Austro-Húngaro também sofria com a fome, agitações políticas e com insurreições nacionalistas, e baixou as armas em 3 de novembro.
Catorze pontos – As tratativas entre a Alemanha e os aliados por um armistício haviam sido abertas em 4 de outubro, com o governo germânico dispostos a negociar com base nos catorze pontos de Woodrow Wilson. O documento que o presidente americano apresentara ao Congresso como base para uma paz duradoura elencava elementos como o princípio da autodeterminação nacional, a restauração do estado belga, o restabelecimento de todo o território francês, o fim dos impérios Austro-Húngaro e Otomano, a abertura de negociações diplomáticas, o fim das barreiras econômicas e garantias recíprocas de independência política e territorial para todos os estados. Obviamente, esses três últimos itens eram especialmente caros aos alemães. França e Grã-Bretanha, porém, não subscreviam todos os pontos do pacto. Londres era radicalmente contra ao fim dos bloqueios, enquanto Paris, sedenta de sangue, desejava impor punições radicais ao inimigo vencido e exigir dele reparações pesadas.
Hábil, Wilson aceitou as objeções dos aliados, mas ao mesmo tempo ameaçou negociar uma paz em separado com os alemães caso os parceiros ocidentais fizessem novas contestações. Os primeiros-ministros David Lloyd George e George Clemenceau não se opuseram mais – ainda que este último, especialmente, tenha ficado descontente com os termos –, e a minuta, oficialmente chancelada pelo Supremo Conselho de Guerra, foi enviada à Alemanha em 5 de novembro. Como condição para a assinatura do armistício, Woodrow Wilson exigiu a abdicação do Kaiser Guilherme II. A insistência causou desconforto no governo alemão, mas foi resolvida pelo chanceler germânico, príncipe Max von Baden, que anunciou em público, no dia 9 de novembro, a abdicação do Kaiser – ainda que este não tivesse consentido com o fato (apenas no dia 28 Guilherme II proclamou oficialmente sua abdicação).
Derrota total – Com todas – ou quase todas – as arestas aparadas, o encontro entre a delegação aliada, comandada pelo marechal Foch e pelo almirante inglês Rosslyn Wemyss, e a alemã, conduzida por Matthias Erzberger, aconteceu em no vagão de trem de Foch, na floresta de Compiègne, no Norte da França, às 2h05 da madrugada do dia 11 de novembro. Os termos do acordo foram severos para a Alemanha, especialmente no que diz respeito a seu desarmamento como forma de prevenir novas hostilidades. Mas não havia margem de negociação para a delegação germânica, que também concordaram em recolher, em um prazo de duas semanas, todos os seus soldados espalhados pela Europa Ocidental e recuar suas tropas dentro da Alemanha a até 40 quilômetros a leste do Rio Reno. Outras resoluções de efeito imediato: a evacuação dos territórios ocupados na Europa Oriental – anulando assim os acordos assinados com Rússia (Brest-Litovsky) e Romênia (Bucareste) – e o fim dos combates na África Oriental.
Todo o material militar tedesco será entregue aos aliados – 5.000 peças de artilharia, 30.000 metralhadoras, 2.000 aviões, 5.000 locomotivas, 150.000 vagões, 5.000 caminhões e a totalidade de sua frota de submarinos (no dia 27 de novembro, 114 U-boats chegaram ao porto de Harwich, na Inglaterra). O restante da frota naval e aérea precisa ser reunida e imobilizada com urgência. Previsivelmente, a Alemanha fica ainda obrigada a libertar todos os prisioneiros de guerra. Em resumo: derrota total e implacável aos alemães.
Assinado depois de três horas de tratativas, às 5h10, o armistício entrou oficialmente em vigor às 11 horas – a décima primeira hora do décimo primeiro dia do décimo primeiro mês de 1918. A notícia foi recebida com gosto agridoce pelos exércitos e populações de todos os países envolvidos nas hostilidades. Em meio aos estampidos que se fizeram ouvir por toda a cidade de Londres, ainda na manhã de 11 de novembro, homens e mulheres olhavam incrédulos uns para os outros, sem conseguir desfrutar do júbilo da vitória. “Eles apenas diziam: a guerra acabou”, testemunhou a enfermeira voluntária Vera Brittain. Vencedores e vencidos unem-se agora em um sentimento de alívio: depois dos 1.567 dias mais longos da história do planeta, chegou a hora de recomeçar

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