O Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o século XX, era ainda uma cidade de ruas estreitas e sujas, saneamento precário e foco de doenças como febre amarela, varíola, tuberculose e peste. Os navios estrangeiros faziam questão de anunciar que não parariam no porto carioca e os imigrantes recém-chegados da Europa morriam às dezenas de doenças infecciosas.
Ao assumir a presidência da República, Francisco de Paula Rodrigues Alves instituiu como meta governamental o saneamento e reurbanização da capital da República. Para assumir a frente das reformas nomeou Francisco Pereira Passos para o governo municipal. Este por sua vez chamou os engenheiros Francisco Bicalho para a reforma do porto e Paulo de Frontin para as reformas no Centro. Rodrigues Alves nomeou ainda o médico Oswaldo Cruz para o saneamento.
O Rio de Janeiro passou a sofrer profundas mudanças, com a derrubada de casarões e cortiços e o conseqüente despejo de seus moradores. A população apelidou o movimento de o “bota-abaixo”. O objetivo era a abertura de grandes bulevares, largas e modernas avenidas com prédios de cinco ou seis andares.
Ao mesmo tempo, iniciava-se o programa de saneamento de Oswaldo Cruz. Para combater a peste, ele criou brigadas sanitárias que cruzavam a cidade espalhando raticidas, mandando remover o lixo e comprando ratos. Em seguida o alvo foram os mosquitos transmissores da febre amarela.
Finalmente, restava o combate à varíola. Autoritariamente, foi instituída a lei de vacinação obrigatória. A população, humilhada pelo poder público autoritário e violento, não acreditava na eficácia da vacina. Os pais de família rejeitavam a exposição das partes do corpo a agentes sanitários do governo.
A vacinação obrigatória foi o estopim para que o povo, já profundamente insatisfeito com o “bota-abaixo” e insuflado pela imprensa, se revoltasse. Durante uma semana, enfrentou as forças da polícia e do exército até ser reprimido com violência. O episódio transformou, no período de 10 a 16 de novembro de 1904, a recém reconstruída cidade do Rio de Janeiro numa praça de guerra, onde foram erguidas barricadas e ocorreram confrontos generalizados
Em novembro de 1904, grande parte da população carioca saiu às ruas para protestar contra o projeto de lei que tornava obrigatória a vacinação contra a varíola. A capital da República fora cercada pelo Exército e a Marinha, enquanto nas praças, a polícia e os cidadãos se enfrentavam em confrontos, que acabaram sendo as principais manifestações pelo quinto aniversário da República. O episódio passou a ser conhecido como a Revolta da Vacina, e depois de um século do ocorrido, o tema ainda não foi esgotado pelos estudos historiográficos. A história oficial sempre procurou desconsiderar a importância da revolta, bem como o caráter fundamental da participação popular no movimento.
O livro de Leonardo Pereira, As barricadas da saúde: Vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República (2002) nos traz informações detalhadas sobre os principais acontecimentos da revolta ocorrida em 1904. Desta forma, apresenta notícias publicadas sobre a revolta em importantes jornais da época, entre eles, A Notícia, Gazeta de Notícias e, principalmente, O Correio da Manhã - principal órgão de oposição ao projeto de obrigatoriedade da vacinação - bem como ocorrências policiais, imagens dos protestos publicados por jornais, charges dos principais jornais da época e mapas da cidade do Rio de Janeiro, com o intuito de enriquecer a discussão e a compreensão de tão importante momento histórico. Vale destacar que, nessa época os jornais passaram a participar efetivamente dos acontecimentos políticos nacionais, emitindo juízos, direcionando pensamentos e ações com o intuito de influir decididamente na opinião pública nacional, deixando de ser entendidos como órgãos meramente noticiosos e imparciais como eram até pouco tempo atrás.
Na tentativa de entender as crenças e concepções de mundo que levaram muitos a se rebelarem contra a lei que obrigava a vacinação, o autor realiza um mergulho nos acontecimentos políticos, econômicos e sociais para explicar mais detalhadamente as ações, não apenas dos mandantes de tal ato, mas de vários sujeitos, muitas vezes desconhecidos pela historiografia, mas que participaram decididamente de tais acontecimentos. “É importante acompanhar nos dias de revolta o desenrolar dos acontecimentos, a fim de conhecer melhor os muitos grupos que deles participaram (...), além de entender as motivações que alimentaram a suas ações” (p.13-4). Além disso, nos é apresentado um balanço dos acontecimentos de novembro de 1904 nos possibilitando analisar as conseqüências para os que patrocinaram o episódio, bem como as bases da construção de memória posterior sobre os acontecimentos.
Por certo, vários conflitos aconteceram na cidade do Rio de Janeiro neste período, como o que envolveu cadetes revoltosos com o governo (entre eles Eurico Gaspar Dutra e o general Travassos), provocando intensos combates e obrigando o governo a decretar estado de sítio na cidade, fechando jornais oposicionistas e aumentando o grau de repressão às manifestações. Sendo assim, o autor nos apresenta o contexto político anterior ao conflito, marcado por várias insurreições populares como a ocorrida em 1880, em virtude do aumento do imposto sobre o preço das passagens de bondes, em 1893 contra o aumento dos impostos nos ítens de consumo, além de um conflito realizado no próprio ano de 1904 contra a implementação de uma taxa sobre veículos, responsável por acarretar um aumento de preços das passagens e que geraria um protesto no qual se uniam motoristas de várias companhias e os próprios usuários de bondes. Por certo, esse período é marcado por importantes conflitos populares, onde o de maior destaque e maior participação da população foi a Revolta da Vacina.
Segundo o autor, existiam duas técnicas distintas entre si que causariam grande discussão em torno da obrigatoriedade da vacina: a primeira consiste na variolização, onde era injetado nas pessoas sãs o pus variólico extraído dos doentes em fase final de recuperação, na tentativa de implantar no organismo são da pessoa uma forma benigna da varíola. Já a vacina, em vez de adotar o próprio pus dos doentes infectados, era composta por uma substância produzida em laboratório a partir de micróbios extraídos de animais infectados por um mal similar à varíola. Esse novo método gerou grande oposição de vários setores da sociedade. Vale ressaltar que, para uma grande parcela da população da época, a obrigatoriedade da vacina era um afronta, uma intromissão arbitrária sobre a vida privada dos cidadãos, e feria a liberdade garantida pela Constituição Federal. A medicina era assim, ao contrário de décadas posteriores, passível de todo tipo de dúvidas e contestações (p. 21-22).
De acordo com Pereira, no início do século XX havia um grande apego da população às religiões afro-brasileiras, que negavam aos médicos o monopólio da cura e, por isso, diante de qualquer tipo de problemas, mesmo que de ordem física, esses religiosos buscavam nos terreiros a solução dos problemas, ou seja, encontravam no seu próprio saber a imunização da doença e, por assim ser, não depositavam confiabilidade ao novo método de imunização.
É importante observarmos que várias vacinações já haviam sido realizadas no Rio de Janeiro contra diversas doenças, mas a grande diferença do projeto apresentado por Oswaldo Cruz foi a forma arbitrária adotada pelos funcionários da saúde pública para imunizar os trabalhadores e suas moradias.
Dessa forma, o principal jornal trabalhado em As barricadas da saúde foi o Correio da Manhã, este que apoiou a criação da Liga contra a vacinação obrigatória. Os conflitos entre manifestantes e policiais tiveram ampla abordagem pelos periódicos da época. Nos dias de conflitos ocorreram gritos, vaias, interrupções de trânsito, bondes assaltados e queimados, etc. No decorrer da obra podemos observar de forma sistêmica a ação da polícia sobre os manifestantes, onde ambas as partes não pouparam a violência para defenderem seus propósitos. Em pouco tempo, o que era uma simples manifestação contra a vacinação obrigatória transformara-se em uma batalha campal entre manifestantes e força pública.
Desta forma, o autor trata com muita precisão as causas de tal manifestação. A principal indagação do trabalho é: quais eram as pessoas que se entregaram obstinadamente a um combate aberto e perigoso contra a polícia? Para os opositores do governo, a resposta era simples: tratava-se da manifestação espontânea dos ódios de um povo que se vê massacrado e perseguido pelo desvirtuamento dos princípios da jovem República. Para os governistas, os conflitos seriam frutos da ação inconseqüente e criminosa de arruaceiros que com seu vandalismo, serviam passivamente a uma causa que lhes seria estranha, eram manipulados por lideranças que aconselhavam resistirem de forma armada.
De certa forma, as autoridades insistiram na tese de que o conflito era simples fruto da manipulação de lideranças oposicionistas, enquanto pelas ruas existia um movimento capaz de unir em uma mesma revolta as mais diferentes classes sociais. Mas o que podemos perceber é que são os protestos que demonstravam um descontentamento geral com a administração republicana.
Em suma, a arbitrariedade policial não era, porém, o único problema enfrentado pelos habitantes da cidade nos anos seguintes à revolta contra a obrigatoriedade da vacina. Vencido o projeto de Oswaldo Cruz, o Rio de Janeiro teve que conviver por mais um longo tempo com os sucessivos surtos de varíola, que vitimavam anualmente grande número de trabalhadores. Com a revogação da contestada lei, estava aberta novamente a possibilidade de que cada um continuasse a decidir suas estratégias de cura a partir das crenças e tradições próprias. Do ponto de vista histórico, a obra As barricadas da Saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República contribui de forma efetiva para a compreensão desse importante conflito na incipiente República brasileira, apresentando fatos, fotos, artigos, documentos, boletins policiais e, sobretudo, riquíssimos materiais produzidos pela imprensa escrita carioca, enfim, informações detalhadas, ricas e sistemáticas sobre a Revolta da Vacina ocorrida em 1904 na cidade do Rio de Janeiro.
Em suma, a arbitrariedade policial não era, porém, o único problema enfrentado pelos habitantes da cidade nos anos seguintes à revolta contra a obrigatoriedade da vacina. Vencido o projeto de Oswaldo Cruz, o Rio de Janeiro teve que conviver por mais um longo tempo com os sucessivos surtos de varíola, que vitimavam anualmente grande número de trabalhadores. Com a revogação da contestada lei, estava aberta novamente a possibilidade de que cada um continuasse a decidir suas estratégias de cura a partir das crenças e tradições próprias. Do ponto de vista histórico, a obra As barricadas da Saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República contribui de forma efetiva para a compreensão desse importante conflito na incipiente República brasileira, apresentando fatos, fotos, artigos, documentos, boletins policiais e, sobretudo, riquíssimos materiais produzidos pela imprensa escrita carioca, enfim, informações detalhadas, ricas e sistemáticas sobre a Revolta da Vacina ocorrida em 1904 na cidade do Rio de Janeiro.
CRONOLOGIA DA REVOLTA
10 de novembro - Devido à proibição de reuniões públicas estabelecida pelo governo, a polícia investe contra estudantes que pregavam resistência à vacinação e são recebidos a pedradas, ocorrendo as primeiras prisões.
11 de novembro - As forças policiais e militares recebem ordens para reprimir comício da Liga contra a Vacinação Obrigatória e o confronto com a população se generaliza para outras áreas do centro da cidade, causando o fechamento do comércio.
12 de novembro - Sob o comando dos representantes da Liga, Vicente de Souza, Lauro Sodré e Barbosa Lima, cerca de 4 mil pessoas saem em passeata para o Palácio do Catete.
13 de novembro - Na praça Tiradentes, uma multidão se aglomera e não obedece à ordem de dispersar. Há troca de tiros e a revolta se espalha por todo o centro da cidade. A população incendeia bondes, quebra combustores de iluminação e vitrines de lojas, invadem delegacias e o quartel da rua Frei Caneca. Mais tarde, os tumultos chegam aos bairros da Gamboa, Saúde, Botafogo, Laranjeiras, Catumbi, Rio Comprido e Engenho Novo.
14 de novembro – Os conflitos continuam por toda a cidade. O exército está dividido. Cerca de 300 cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha tentam depor o presidente. Recebem o apoio de um esquadrão da Cavalaria e uma companhia de Infantaria. Na Rua da Passagem, em Botafogo, encontram-se com as tropas governamentais. Segue-se um intenso tiroteio. A debandada é geral. O governo tem 32 baixas, nenhuma fatal. Os rebeldes, três mortos e sete feridos.
15 de novembro - Os tumultos persistem, sendo os maiores focos no Sacramento e na Saúde. Continuam os ataques às delegacias, ao gasômetro, às lojas de armas. No Jardim Botânico, operários de três fábricas investem contra os seus locais de trabalho e contra uma delegacia. Estivadores e foguistas reivindicam junto às suas empresas a suspensão dos serviços. Há conflitos ainda nos bairros do Méier, Engenho de Dentro, Encantado, São Diego, Vila Isabel, Andaraí, Aldeia Campista, Matadouro, Catumbi e Laranjeiras.
Horácio José da Silva, conhecido como o Prata Preta, lidera as barricadas na Saúde. Os jornalistas acompanham os episódios e visitam alguns locais de conflito. Descrevem a “multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro uns, de garruchas e navalhas à mostra”. A Marinha ataca os rebeldes e as famílias fogem com medo.
16 de novembro - O governo decreta o estado de sítio. Os conflitos persistem em vários bairros. As tropas do Exército e da Marinha invadem a Saúde, aprisionando o Prata Preta.
O governo acaba por recuar e revoga a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. A polícia aproveita os tumultos e realiza uma varredura de pessoas excluídas que perambulam pelas ruas da capital da República. São todas enviadas à Ilha das Cobras, espancadas, amontoadas em navios-prisão e deportadas para o Acre, a fim de trabalharem nos seringais. Muitas não chegam ao seu destino e morrem durante a viagem.
A revolta deixa um saldo de 30 mortos, 110 feridos e 945 presos, dos quais 461 são deportados para o Acre.
Fontes:
- Meihy, J.C. & Bertolli Filho, C. Revolta da vacina. São Paulo: Ática, 1995. (Coleção Guerras e Revoluções Brasileiras, v.5);
- Sevcenko, N. A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 1993. (História em Aberto).
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