sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE

Para muitos teóricos, filósofos e sociólogos, a época atual é marcada por fenômenos que representam um divisor de águas com a Modernidade. Chamada e estudada como Pós-Modernidade, ela é caracterizada por mudanças significativas provocadas e vividas pelo homem. Entre as mais evidentes, e que desencadearam muitas outras, pode-se apontar a globalização, unificadora das sociedades do planeta, um novo modo de cultura e as novas condições que põem em perigo a continuidade da espécie humana. 
A Pós-Modernidade surgiu com a desconstrução de princípios, conceitos e sistemas construídos na modernidade, desfazendo todas as amarras da rigidez que foi imposta ao homem moderno. Com isso, os três valores supremos, o Fim, representado por Deus, a Unidade, simbolizada pelo conhecimento científico e a Verdade, como os conceitos universais e eternos, já estudados por Nietzsche no fim do século XIX, entraram em decadência acelerada na Pós-Modernidade.

Por conta disso, para a maioria dos autores, a Pós-Modernidade é traçada como a época das incertezas, das fragmentações, da troca de valores, do vazio, do niilismo, da deserção, do imediatismo, da efemeridade, do hedonismo, da substituição da ética pela estética, do narcisismo, da apatia, do consumo de sensações e do fim dos grandes discursos. 

O efeito cascata das grandes mudanças

Como conseqüência dessa derrocada, surgiram outros fenômenos sociais e culturais. O declínio da esfera pública e da política, a crise ecológica, o impasse histórico do socialismo, os tribalismos, a expansão dos fundamentalismos, as novas formas de identidade social e as conseqüências da informatização sobre a produção e sobre o cotidiano trouxeram à tona a discussão sobre a pluralidade e a fragmentação presentes na época atual.

Essas mudanças e outras que também marcaram a história da humanidade, como a explosão da bomba atômica em Hiroshima, o perigo nuclear e o terrorismo internacional, fizeram com que o futuro se tornasse incerto e ameaçador, enfraquecendo a crença na posteridade e fazendo com que as ações humanas passassem a ser conduzidas focando apenas o presente, diluindo assim o sentido da continuidade histórica.

Essa conduta, associada ao avanço ininterrupto dos meios tecnológicos de comunicação e aos efeitos da globalização com a sua queda de fronteiras, fez emergir um novo tipo de sociedade, caracterizada, salvo raras exceções, pelo narcisismo, pelo hedonismo, pelo imediatismo e pelo consumismo. Sem a pretensão de tomada do poder, essa nova organização social participa, sem envolvimento profundo, de pequenas causas e dá adeus à esperança e aos grandes ideais. No entanto, ao afrouxar os laços sociais, vai, inconscientemente, esvaziando as instituições num processo chamado por sociólogos, como Gilles Lypovetsky, de deserção do social.

A deserção de valores e de instituições
Após a agitação política e cultural dos anos 60, a despolitização, a dessindicalização e a deserção adquiriram proporções nunca antes atingidas. Como exemplo, na guerra da Coréia em 1950, não houve desertores. Na do Vietnã, em 1975, houve aos montes.


Mas a deserção não parou por aí. A esperança revolucionária, a contestação estudantil e a vanguarda esgotaram-se nos seus conceitos e movimentos, fazendo surgir uma espécie de apatia, de neutralização e de banalização do social.  Com isso, a vida particular emerge vitoriosa. Torna-se possível zelar, sem culpa, apenas por seus próprios interesses, perder os complexos, enfim, viver o presente sem maiores preocupações com as tradições, com a alteridade e com a posteridade.

A decadência das grandes idéias e o mundo Pós-ModernoAo mesmo tempo em que se associou à Pós-Modernidade a decadência das grandes idéias, valores e instituições ocidentais como Deus, Ser, Razão, Sentido, Verdade, Totalidade, Ciência, Sujeito, Consciência, Produção, Estado, Revolução e Família, valorizou-se outros temas considerados menores ou marginais em filosofia, como Desejo, Loucura, Sexualidade, Linguagem, Poesia, Sociedades Primitivas, Jogo, Cotidiano, enfim, elementos que abrem novas perspectivas para a liberação individual.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A Educação durante o governo Vargas


O GOVERNO VARGAS E O EQUILÍBRIO ENTRE
A PEDAGOGIA TRADICIONAL E A PEDAGOGIA NOVA



Como texto introdutório sobre a educação na Era Vargas, trago algumas informações sobre o modelo pedagógico da escola nova, no período, através de escritos de Lourenço Filho e suas iniciativas em escolas primárias particulares. Os novos métodos de ensino, inicialmente, limitaram-se a um público restrito, tanto pelas iniciativas em escolas particulares, quanto pela manutenção de escolas pela Igreja católica, espaço, na época, da educação tradicional.

Desde as primeiras décadas do século XX, os rumos da educação do país estiveram na pauta de discussão de vários setores organizados da sociedade. A fundação da Associação Brasileira de Educação, em 1924, com a função de promover debates em torno da questão educacional; a influência da Escola Nova e seus defensores, movimento que se empenhou em dar novos rumos à educação, questionando o tradicionalismo pedagógico, e os embates da Igreja no seu confronto com o estabelecimento de novos modelos para a educação tornam evidente a diversidade de interesses que abrangia a educação escolarizada.

A criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública em 1930; a Constituição de 1934 estabelecendo a necessidade de um Plano Nacional de Educação, como também a gratuidade e obrigatoriedade do ensino elementar, e as Reformas Educacionais nos anos de 1930 e 40 demonstram que, nessas décadas, houve mudanças formais e substanciais na educação escolar do país.

Essas questões não podem ser destacadas do processo de desenvolvimento do modelo industrial, como também da demanda por educação.

A década de 1930 é reconhecida como o marco referencial da modernidade na história do Brasil, modernidade entendida como o processo de industrialização e urbanização, contemplada por inúmeros estudos que destacam esse período pelas mudanças que inaugurou e os movimentos políticos que protagonizou: a Revolução de outubro de 1930, a Revolução Constitucionalista de 1932 e o Estado Novo, em 1937. As análises se valem de diferentes conceitos, abordagens e suportes teórico-metodológicos, para investigar os processos que culminaram nesses acontecimentos e sobre quais forças políticas e interesses predominaram nas alterações ocorridas no país, em um momento de definições sobre como encaminhar o desenvolvimento capitalista industrial.

Em uma abordagem geral, a Revolução de 1930 foi fruto da crise econômica do setor agro-exportador do café agravada com a quebra da bolsa de Nova York em 1929, e dos embates de segmentos sociais que não se consideravam referenciados no processo político da Primeira República, marcados por sucessivas eleições pactuadas entre os setores agrários. O golpe de Estado em 1937, que instalou o Estado Novo, foi justificado pela necessidade de se manter a ordem institucional contra os regionalismos, herança do período anterior; contra as divergências entre os grupos dominantes: setores agrários e burguesia industrial e contra as manifestações das forças de oposição, como por exemplo, a Intentona Comunista em 1935.

Esse período intensificou as mudanças nas relações entre Estado e sociedade, fortalecendo a centralização do poder e facilitando a criação de um Estado forte, que predominou até meados dos anos de 1940.

A recente modernização capitalista no Brasil, nos anos de 1930, trouxe a expansão de novas camadas sociais e abriu possibilidades de mobilidade social na estrutura de classes da sociedade brasileira, com a ampliação do mercado de trabalho e do mercado consumidor.

Nesse contexto de expansão das forças produtivas, a educação escolar foi considerada um instrumento fundamental de inserção social, tanto por educadores, quanto para uma ampla parcela da população que almejava uma colocação nesse processo. Às aspirações republicanas sobre a educação como propulsora do progresso, soma-se a sua função de instrumento para a reconstrução nacional e a promoção social.

Acompanham esse quadro, as discussões em torno dos modelos educacionais. Do ponto de vista do ideário, o liberalismo se consubstanciou na Primeira República no país e se fez presente nas políticas educacionais, tomando lugar, paulatinamente, da ideologia educacional católica.

O discurso pedagógico liberal se expressou na escola nova, movimento de renovação escolar que se desenvolveu em vários países e chegou ao Brasil na década de 1920, fruto das mudanças inerentes ao processo de desenvolvimento capitalista, com seus novos valores, necessitando, segundo seus defensores, de uma renovação da escola.

Quanto aos métodos de ensino, a pedagogia tradicional predominou até o fim do século XIX, enfatizando a atuação do professor. Como ensinar é uma das diretrizes dessa concepção pedagógica. A pedagogia nova toma corpo a partir das primeiras décadas do século XX, mudando o foco e centralizando o processo de aprendizado no aluno. Como aprender é o seu eixo principal, fundamentando-se nos aspectos psicológicos do processo de aquisição de conhecimentos.

Escola ativa ou escola da iniciativa foram termos usados, na época, para designar esse movimento de renovação educacional, o aprender a aprender, na definição atual. No dizer da Escola Nova, o processo de aquisição do conhecimento, diferentemente da escola tradicional, surge da ação da criança.

Os anos de 1930 foram férteis em relação à nova educação. As propostas sobre educação do Manifesto dos Pioneiros, publicado em 1932, foram defendidas por educadores que ocuparam cargos na administração pública e que implementaram diretrizes educacionais, respaldados por essa visão de educação.

Contrastando com a educação tradicional, as novas tendências pedagógicas visavam proporcionar espaços mais descontraídos, opondo-se como investigação livre, à educação ensinada. Os novos métodos de ensino visavam à auto-educação e a aprendizagem surgia de um processo ativo.

Sobre a Escola Ativa, Lourenço Filho, um de seus precursores no país, afirma:

[...] aprende-se observando, pesquisando, perguntando, trabalhando, construíndo, pensando e resolvendo situações problemáticas apresentadas, quer em relação a um ambiente de coisas, de objetos e ações práticas, quer em situações de sentido social e moral, reais ou simbólicos. (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 151),



Em São Paulo , segundo o autor, as escolas pioneiras na aplicação dos novos métodos de aprendizagem foram a Escola Experimental Rio Branco, a Escola Modelo, anexa à escola Normal da Praça da República, hoje Instituto Caetano de Campos e a Escola Americana, atual Instituto Mackenzie, primeiramente nos cursos primários. (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 175-176).

Na sua exposição sobre a Escola Nova, esse educador relata uma experiência com alunos do curso primário na Escola Experimental Rio Branco, sobre a técnica dos projetos, como procedimento didático, desenvolvida por John Dewey, que prima pela participação do aluno, o que promove sua motivação e a aprendizagem com objetivos definidos. Ainda sobre sua experiência na Escola Rio Branco, Lourenço Filho indica que o projeto implica ensino globalizado [...] e o papel do mestre como conselheiro discreto, (que) encaminha, estimula, sugere. (LOURENÇO FILHO, 1978, p.199, 210).

O processo de implantação da educação renovada em São Paulo ocorreu, nos anos de 1930 e 40, nos cursos primários de escolas particulares, indicando que a criança das camadas médias da população foi o público, inicialmente, atingido por esse modelo de educação.

Dados estatísticos nos indicam que o acesso à educação primária nos anos de 1930 e 40, mesmo com a ampliação na oferta de vagas nas escolas primárias e frente à demanda por educação nos centros urbanos, não atingiu a maioria da população infantil. (SPOSITO, 1984, p. 32-34).

Saviani sobre a propagação da pedagogia da nova escola nos indica que,

[...] a “Escola Nova” organizou-se basicamente na forma de escolas experimentais ou como núcleos raros, muito bem equipados e circunscritos a pequenos grupos de elite. No entanto, o ideário escolanovista, tendo sido amplamente difundido, penetrou nas cabeças dos educadores acabando por gerar conseqüências também nas amplas redes escolares oficiais organizadas na forma tradicional. Cumpre assinalar que tais conseqüências foram mais negativas que positivas uma vez que, provocando o afrouxamento da disciplina e a despreocupação com a transmissão de conhecimentos, acabou por rebaixar o nível do ensino destinado às camadas populares as quais muito freqüentemente têm na escola o único meio de acesso ao conhecimento. Em contrapartida, a “Escola Nova” aprimorou a qualidade do ensino destinado às elites. (SAVIANI, 1985, p. 14).

           

A Era Vargas foi palco das primeiras investidas dos novos métodos de ensino, preconizando a centralidade na criança e na sua iniciativa no processo de aquisição do conhecimento. Mesmo que inicialmente restrito, porque atendendo a uma camada da população, esse ensino renovado se sedimentou, atingindo amplos setores educacionais, incitando uma discussão sobre os princípios norteadores de seu método de ensino, que nem sempre atende as necessidades de parte da população escolar.

Bibliografia

LOURENÇO FILHO, M. B. Introdução ao estudo da Escola Nova. São Paulo, Melhoramentos, 1978.

SPOSITO, M. O povo vai à escola. São Paulo, Loyola, 1984.

SAVIANI, D.Escola e Democracia. São Paulo, Cortez, 1985

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O GOVERNO DUTRA

Assista ao vídeo, mas não deixe de ler o resumo abaixo para melhor compreensão do período histórico.



Com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e a consequente derrota das ditaduras do Eixo, os mais diversos grupos sociais passaram a clamar por uma urgente redemocratização das instâncias políticas internacionais. A despeito da participação da União Soviética stalinista nesse triunfo, o recado que o fim da guerra parecia dar ao mundo era que as relações humanas precisavam ser travadas em níveis mais liberais. A criação da ONU, a Declaração dos Direitos Humanos e a difusão dos movimentos de descolonização imperialista correspondiam, em planos distintos, a essas novas demandas.


Presidente Dutra (Foto: Divulgação)
Em terras brasileiras, mesmo com a popularidade do presidente Getúlio Vargas, tal clamor libertário se materializou no crescimento das críticas ao Estado Novo. Setores das forças armadas e da imprensa encabeçavam a oposição à ditadura varguista, que viria a padecer com a convocação de novas eleições presidenciais, das quais Vargas fora proibido de participar e Eurico Gaspar Dutra sairia vitorioso.
É importante lembrar que tal mudança na presidência da república não indicou necessariamente um rompimento com a política varguista. Ao contrário, Dutra foi eleito fundamentalmente pelo apoio ofertado por seu antecessor à sua campanha. Além disso, dos novos partidos que viriam a ser criados, dois dos mais importantes apresentavam o “DNA político” de Vargas: o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e a o PSD (Partido Social Democrático). A própria UDN (União Democrática Nacional), representante de setores conservadores e opositores ao Estado Novo, ganhou espaço no espectro político brasileiro justamente pelos ataques que fazia a Getúlio.
DUTRA E A GUERRA FRIA


Constituição de 1946 no jornal (Foto: Reprodução)
Com a chegada de Eurico Gaspar Dutra à presidência da República (1946-1951), o país dava mais um importante passo no processo de redemocratização e de ruptura com a ditadura estadonovista. Neste cenário, a criação de uma nova constituição se impunha como algo fundamental à liberalização das estruturas políticas nacionais. Em 1946, uma nova Carta foi, então, elaborada, através dela estavam garantidas as mais diversas liberdades, como de pensamento e expressão, imprensa e organização partidária.
No entanto, a construção da jovem democracia brasileira foi profundamente abalada pelos caminhos que as relações internacionais tomaram no país. Em um contexto mundial marcado pela Guerra Fria, o Brasil de Dutra se alinhou às diretrizes norte-americanas, o que motivou o corte de relações com a União Soviética, além da perseguição a políticos comunistas e, mais exemplarmente, da cassação do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
As relações entre Brasil e Estados Unidos ficaram ainda mais estreitas com a criação da Missão Abbink e da assinatura do TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca). Enquanto a primeira criava uma comissão com representantes dos dois países para discutir os caminhos tomados pela economia brasileira, o segundo ampliava a rede de combate à expansão comunista no continente americano. A formação da ESG (Escola Superior de Guerra) evidenciava igualmente a interferência estadunidense em importantes questões nacionais, face à grande participação de militares norteamericanos em sua criação.


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

RESENHA - Uma Longa Idade Média


Tornam-se cada vez mais comum a apresentação de trajetórias acadêmicas e intelectuais em forma de testemunho, coletadas a partir de conversas e entrevistas.

Normalmente efetuadas quando o profissional está perto do final de sua carreira e se encontra em idade avançada, na qual a avaliação e organização da obra se evidenciam corriqueiramente.

Para Jacques Le Goff esse tipo de empreendimento já se tornou comum, uma vez que o tem praticado desde o final da década de 1970, devido o sucesso da História das  Mentalidades e do Imaginário. No entanto, enquanto as conversas e entrevistas concedidas nos anos de 1970 e 80 vislumbravam mais a atuação do autor e do grupo, ao qual faz parte até hoje, que é o da ‘terceira geração’ do movimento dos Annales na França, nas que tem oferecido nesta primeira década do século XXI, estas tem demarcado especificamente sua trajetória e produção intelectual.

Com a colaboração e a intervenção de Jean-Maurice de Montremy, Le Goff neste Em busca da Idade Média, conta-nos basicamente como se formou e de que maneira surgiu seu interesse para estudar a civilização do ocidente medieval (termo que cunharia em uma de suas obras), quais foram suas leituras e quais seus autores prediletos, como o período foi estudado e como contribuiu para melhorar a compreensão daquela época – para muitos (ainda hoje) tão distante e exótica.

As conversas que deram origem a obra, revela-nos Montremy, ocorreram entre 21 de fevereiro e 24 de julho de 2002, em intervalos de quinze dias cada encontro.

O texto foi depois inteiramente revisto e ampliado pelo autor. Montremy indica ainda que: “Jacques Le Goff nos convida a descobrir uma civilização-continente. Porque é bem a Europa que se desenha pouco a pouco a partir dessas pesquisas no espaço e no tempo. Uma Europa de fronteiras mais culturais do que geográficas. Uma Europa que jamais foi inteiramente uma ‘cristandade’, ainda que, durante séculos, tenha se imaginado como tal” (LE GOFF, 2006, p. 12).

Para melhor distribuir o conteúdo das conversas, dando-lhes um caráter temático, o texto foi dividido em cinco capítulos, nos quais foi abordado como se tornou medievalista, a Idade Média que se pensou e a que o autor estudou, quais assuntos que estudou em seus livros, como sua obra foi tomando forma e como tem pensado atualmente a civilização do ocidente medieval (dando ênfase aos seus estudos biográficos, como o feito sobre São Francisco de Assis). O conjunto de temas discutidos no livro dá bem o perfil intelectual de seu autor, e, particularmente, demarcam a Idade Média de Jacques Le Goff.

O primeiro ponto discutido foi como e por que Jacques Le Goff decidiu ser um medievalista e resolveu estudar a Idade Média. A constatação inicial da influência das leituras dos romances de Walter Scott, como Ivanhoé (de 1819), no qual identifica um período épico de lutas, conquistas e paixões, já o seduzia desde os 10 anos de idade.

A leitura posterior de A batalha de Bouvines (de 1973) de Georges Duby, com pouco mais de 50 anos, segundo indica, o fez reviver, na época, suas leituras e lembranças do Professor do Curso de História e de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, na Unidade de Amambai.

A infância e da adolescência, quando foi um voraz leitor de romances históricos. Outra influência marcante para o autor foi seu professor de História no Quatrième (equivalente a 5ª série do ensino fundamental no Brasil) Henri Michel. Nos anos de 1930, quando foi seu aluno, o olhar sobre a Idade Média, ainda conduzia os alunos a pensá-la apenas como um momento de trevas. E professores como Henri Michel o auxiliaram a escapar daquelas imagens (formadas a partir do Renascimento, consolidadas no Iluminismo e em pleno século XX ainda estavam em vigor). Em suas palavras:

Na época em que eu lia Walter Scott e me enriquecia com os cursos de Henri Michel, via a Idade Média, apesar de seus ecos contemporâneos, como um mundo longínquo, diferente do nosso. Nela conviviam práticas bárbaras e figuras sublimes, impressionantes. Essa Idade Média já não vivia entre nós: tinha desaparecido. Era um sonho que se esfumaçava (Idem, p. 25).

Com base apenas em suas lembranças, Le Goff fala de como via a década de 1930 e 1940, como um momento de drásticas mudanças para o mundo, e também de alterações  significativas sobre a maneira de se conceber e interpretar a civilização do ocidente medieval.

Sentia muito claramente nossa entrada numa outra era. Adivinhava que essas mudanças materiais, cotidianas, eram um dos componentes fundamentais da História. Que a História ainda uma vez, não se limitava às batalhas, aos reis, aos governos.

Uma certa maneira de ser e de pensar tornava-se ultrapassada. Mais tarde, chamaria esse momento de mudança de mentalidade – mudança que acompanharia as trocas materiais (Idem, p. 27).

Foi tomando consciência do período em que estava vivendo que o autor, ainda de forma rudimentar (como depois dirá), foi percebendo a importância e a função do historiador ‘ao viver e ao fazer viver’ (uma outra época), como depois fez ao estudar a Idade Média. A descoberta da necessidade das fontes para a produção do discurso do historiador foi outro passo fundamental, por que se pode “dizer que toda a história se situa na produção de documentos e na decifração dos documentos a que denominamos “fontes” (Idem, p. 37). E, evidentemente, não somente os documentos escritos, mas todo e qualquer indício que identifique o agir de homens e mulheres do passado.

Para os historiadores ‘positivistas’ do século XIX e do início do século XX, era suficiente reunir documentos, fazer-lhes a crítica do ponto de vista da autenticidade (provar que não eram falsos – a história dos falsos é uma bela página da historiografia) e a obra histórica estava pronta.

Aprendi com meus mestres dos Annales que é o historiador que cria o documento, que confere a traços, a vestígios, como diria Carlo Ginzburg, o status de fonte. O questionamento do historiador – as questões que levanta para si e que levanta em relação ao documento (uma parte essencial de seu ofício) – constitui a base da historiografia, da História (Idem, 38).

No início da década de 1950, o autor se viu diante da questão da delimitação espacial e temporal de seu objeto, pois, todo “medievalista [diz] vê-se diante da questão de seu período”, mas tendo em vista que “os diferentes domínios da atividade humana não se periodizam da mesma maneira”. E para ele não foi diferente, ao ter que questionar a divisão ainda preponderante que era a estabelecida entre os séculos V (476) e XV (1453 em alguns casos, 1492 em outros). Desse modo, não foi por acaso que ele passou a rever a idéia de início e de final do período, que passaria a ser seu objeto de pesquisa. Tal como outros autores o fariam, ele verificou a viabilidade de se pensar uma ‘Antiguidade Tardia’ (entre os séculos V e VIII), para o até então consagrado início do período medieval.

A Idade Média ocidental não é programada. Nasce de uma aculturação na qual se confundem pouco a pouco os usos e costumes grecoromanos com os dos ‘bárbaros’. Nasce também da confrontação com o Islam. Na origem, de fato, nada predispunha o Império do Ocidente – que englobava a África do Norte – a se tornar ‘europeu’. Da conquista muçulmana na Espanha (século VIII) até a hegemonia otomana nos Bálcãs (século XIV), o Ocidente não se concebe em si mesmo como entidade geopolítica. Estrutura-se apenas por sua existência diante de um mundo que se mostra hostil (Idem, p. 80-1).

No caso do final do período houve um questionamento semelhante, na medida em que se procurou pensá-lo não no século XV, mas sim no XVIII. Para ele o Renascimento Italiano foi um dos vários renascimentos vividos pela civilização do ocidente medieval, sendo, portanto, mais um Renascimento medieval.

... as mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média, uma Idade Média que – em certos aspectos de nossa civilização – perdura ainda e, às vezes, desabrocha bem depois das datas oficiais. O mesmo se pode dizer em relação à economia, não se pode falar de mercado antes do século XVIII. A economia rural só consegue fazer desaparecer a fome no século XIX (salvo na Rússia). O vocabulário da política e da economia só muda definitivamente – sinal de mudança das instituições, dos modos de produção e das mentalidades que correspondem a essas alterações – com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial (Idem, p. 66).

A Idade Média foi, portanto, um continente que o autor começou a descobrir em suas pesquisas entre as décadas de 1950 e 1960. Neste aspecto, Le Goff revela por que nesse ínterim acabou não levando a cabo seu doutoramento, e ao mesmo tempo como começava a receber de editores encomendas de obras sobre o período.

Nosso mundo era tradicionalmente regido pelos assuntos de tese e pelas grandes questões de curso, destinadas ao programa de agregação. Surgiram, com os editores, expectativas imprevistas. Faziam-nos um pedido, com o qual já quebravam a ordem convencional, obrigando-nos a um tratamento diferente dos problemas. É um momento importante da história cultural. Os diretores de coleções, os novos tipos de obra, as abordagens diferentes suscitavam de nossa parte um texto diferente, e portanto necessariamente a abertura de campos até então inexplorados (Idem, p. 90).

E foi justamente essa abertura e essa descoberta de novos campos que o fez estudar o ‘mercador-banqueiro’ (categoria social nova que foi surgindo no século XII), a idéia e a organização das universidades na Europa (e a multiplicação de profissões, em função da ampliação da divisão do trabalho nos séculos XII e XIII), com a inovação do trabalho do ‘intelectual’, até chegar nos anos de 1980 e 90 a estudar indivíduos como São Luis e São Francisco de Assis. Nessas pesquisas iniciais observou que a “novidade da Idade Média seria antes o comércio, para o qual o mar tinha grande importância, no Sul (Itália) como no Norte (Alemanha e Báltico)” (Idem, p. 117). Por outro lado, prossegue dizendo que:

Os grandes escolásticos dos séculos XIII-XIV só percebem a economia engastada na religião, para retomar uma expressão de Karl Polanyi [em A grande transformação]. É preciso esperar pelos jesuítas de Salamanca do fim do século XVI para encontrarmos verdadeiros economistas. Os jesuítas que ensinavam na Universidade de Salamanca, o principal dos quais foi Francisco Suárez (1548-1617), introduziram na tradição escolástica de Tomás de Aquino conceitos e raciocínios propriamente econômicos. Os metais preciosos da América e o uso que deles fazia a Casa de Contratación de Sevilha modernizaram uma ciência econômica que já não era medieval. O domínio específico da economia, entretanto, só aparecerá no século XVIII, com os fisiocratas e a noção de mercado (Idem, p. 116-7).

Ao caracterizar em suas pesquisas os aspectos do renascimento dos séculos XII e XIII e as mudanças na forma de atuação do cristianismo, indica que: “Até o século XII, Deus permanece em primeiro lugar como Pai. Depois disso, a figura do Filho o supera (...) Os valores tornam-se carne. Através dos mercadores-banqueiros e dos intelectuais, creio ter situado o quadro essencial de minha reflexão sobre a Idade Média.

O aparecimento dessas duas novas categorias sociais ‘marca’ a civilização medieval” (Idem, p. 119). Mas se de um lado sua obra é marcada por estudos monográficos, de outro, não deixou de lado a preocupação com a docência, elaborando também manuais didáticos para serem usados nas universidades. Foi assim que, na década de 1960, Raymond Bloch lhe fez a sugestão de participar de uma coleção sobre as grandes civilizações. Daí teve origem seu livro A civilização do ocidente medieval publicado em 1964.

Parecia-me também, mergulhado nos manuais de confissão, percorrendo os numerosos sermões dos pregadores, que a Idade Média tinha modelado noções de polidez, de códigos morais, até de urbanidade extremamente novas, na medida em que essa expansão das cidades, dominada, não tinha precedente. Constituiu-se uma civilidade urbana, paralela à cortesia do mundo dos nobres. Só a palavra civilização integrava harmoniosamente os valores de cima e os valores de baixo (Idem, 125).

A noção de ‘criação’ foi o outro termo fundamental para pensar àquelas mudanças. O desenvolvimento da sociedade medieval, por outro lado, foi ainda marcada pelo calendário (a partir do século VII), com base nos sinos das igrejas, e pelas leituras individuais, que a partir do século XIII conheceu a difusão dos Livros de Horas:

“Trata-se de manuais em que a devoção é repartida segundo as horas de cada dia. Exclusivos, claro, dos que sabem ler, destinavam-se portanto a leigos poderosos e principalmente a suas mulheres. Testemunham também um certo crescimento na importância dos leigos e das mulheres na sociedade cristã, crescimento enquadrado pelo calendário. Sabe-se, de resto, que esses Livros de Horas, muitas vezes ricamente ilustrados, forneceram algumas das mais belas obras-primas das miniaturas da Idade Média” (Idem, p. 138-9). Na sua discussão, evidentemente, Le Goff não deixa de tocar em assuntos como o purgatório, a morte, o direito, o monoteísmo do cristianismo, temas para os quais também destinou importantes livros e artigos.

A questão do humanismo, do ateísmo e dos hereges na Idade Média também lhe envolveu a atenção. Isso porque essa caracterização do indivíduo tocava em outro ponto fundamental para o período, que foi a criação e a identificação  do ‘bem’ e do ‘mal’ e, por extensão, de Deus e do Diabo, de anjos e de demônios, de céu e de inferno, tensões para as quais, como foi dito acima, foram a base da civilização do ocidente medieval. Assim, ao avaliar e articular todas as suas obras, dando coerência a sua trajetória, Le Goff não poderia se eximir de chegar a conclusão de que a “Idade Média aqui apresentada é a minha Idade Média” (Idem, p. 212).

Mas considero sempre possível pensar a história do Ocidente (ou da Europa) a partir da era cristã na duração mais longa (a ‘longa Idade Média’), sem cair nos clichês e nas fantasias de uma história feita de saltos, de estagnações e de declínios, ou ainda menos nos de uma história em migalhas. De modo que vejo a Idade Média se desfazer em uma multiplicidade de heranças (Idem, 213).

A leitura dessa obra, nesse sentido, permite que se compreenda como um historiador, Jacques Le Goff, fez suas escolhas, suas pesquisas e seus questionamentos sobre toda uma época, a da Idade Média, a Idade Média do autor. Evidentemente, pudesse questionar aqui que o autor procurou elaborar o relato, ou mais precisamente, o testemunho que deseja que fique para a posteridade; e, nesse caso, disputas pelo poder ficaram minimizadas, ou excluídas da discussão, críticas aos livros fossem deixadas de lado e a própria elaboração da obra ocupasse um itinerário quase que linear na sua trajetória (mas que autor não faria isso?). Pode-se ainda observar que o livro é mais a organização das memórias do autor, do que uma investigação histórica, na qual o uso das fontes é um ponto essencial. Alguns poderiam justificar que a escolha do autor se deve ao fato de que este estilo narrativo tem sido muito praticado, a exemplo dos textos de Pierre Bourdieu (1930-2002) Esboço de auto-análise (de 2004) e de Edward W. Said (1935-2003) Fora do lugar: memórias (de 1999) – e, aqui, vale destacar a exceção a essa regra, que foi a autobiografia de Eric Hobsbawm Tempos interessantes, publicada em 2002, na qual o uso de fontes sobrepôs o relato das memórias do autor. Por outro lado, se levarmos em conta o quanto Jacques Le Goff foi crítico quanto a questões como a de um progresso material contínuo, de um sentido e de uma linearidade na História e na pesquisa histórica, de sua preocupação com as relações tensas e difíceis entre História e Memória, às suas críticas as fontes e sobre as Filosofias da História, o autor não teria sido traído por seu discurso nesta sua brilhante aula (a partir de suas memórias) sobre a sua trajetória intelectual?

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Idade Média - As Relações Sociais, A Igreja e A Mulher - três visões

Relações Sociais

Na Idade Média prevaleciam as relações de vassalagem e suserania. O vassalo recebia do suserano um lote de terra e em troca devia ao senhor fidelidade e trabalho. Estas redes de vassalagem se estendia a todos e chegava ao rei – que era tido como um vassalo de Deus.

A sociedade era estática e hierarquizada tendo em seu topo o clero (membros da Igreja católica) e a Nobreza (senhores feudais, cavaleiros, condes, duques e viscondes). A nobreza era detentora das terras e arrecadava impostos dos camponeses.

Nesta época o cavaleiro é o detentor dos instrumentos necessários para vencer o combate, graças à superioridade do cavalo, da armadura e das armas. Ele chega esta condição através de um rito, a sagração momento no qual após ter atingido sua educação militar e através de uma cerimônia, ascendia a posição de defensor da paz. Na França este grupo rapidamente se tornou hereditário ao receber feudos em troca dos serviços prestados, ocorrendo ali uma fusão entre cavalaria e nobreza

Uma parte dos nobres, principalmente os não-primogênitos tornam-se cavaleiros sem fortuna girando ao redor de um grande senhor e prontos para aventurarem-se em guerras privadas, daí os estímulos externos das Cruzadas para controlá-los. Como não havia terras para todos, uma parte da nobreza passou a voltar-se para saques e guerras privadas.

Tentando solucionar este problema, a Igreja buscou estipular normas a serem adotadas pelos cavaleiros. Pela Paz de Deus (fins do século X), eles deveriam respeitar os camponeses, os clérigos, mercadores e os seus bens e pela Trégua de Deus (século XI) se absteriam de lutar entre a quinta à tarde e a segunda-feira pela manhã. A Igreja tentou também transformar o cavaleiro num miliciano de Deus, um defensor dos pobres, viúvas e do clero

O cavaleiro que fosse para a Cruzada recebia da Igreja o perdão por seus pecados. Para São Bernardo, o modelo de perfeição era o monge-cavaleiro e por isto ele deu grande apoio ao surgimento das Ordens Militares, como a dos Templários.

Igreja Católica

A influência da Igreja na Europa Medieval

Durante a maior parte da Idade Média, a Igreja permaneceu como a instituição mais organizada e estável da Europa. Os Estados “bárbaros” constituíam-se e desapareceram sucessivamente, em virtude de guerras internas e invasões. A Igreja, ao contrário, centralizou sua administração em Roma, enquanto fazia crescer seu patrimônio e seu poder econômico por meio de doações, esmolas e isenção de impostos. No século XI foi implantado o celibato obrigatório (proibição do casamento) a todo o clero, o que impedia o surgimento de herdeiros que reivindicassem bens da Igreja. Como as leis da época não garantiam a filhos ilegítimos nenhum direito à herança, o patrimônio eclesiástico se mantinha fora do alcance dos que nascessem da quebra da castidade clerical.

Não deve causar surpresa, portanto, o fato de a Igreja ter se tornado o maior proprietário rural da Europa medieval. E, se lembrarmos a importância da propriedade da terra no mundo feudal, não é difícil presumir a influência que isso proporcionava à instituição.

A Igreja e a Usura

O historiador francês Jacques Le Goff consultou um manuscrito do século XIII, na biblioteca nacional de Paris, que expõe com clareza como os clérigos opunham-se à usura, isto é, ao empréstimo a juros:

“Os usurários pecam contra a natureza querendo fazer dinheiro gerar dinheiro, como cavalo com cavalo ou mulo com mulo. Além disso, os usurários são ladrões (latrones), pois vendem o tempo, que não lhes pertence, e vender um bem alheio, contra a vontade do possuidor, é um roubo. Ademais, como nada vendem a não ser a espera do dinheiro, isto é, o tempo, vendem os dias e as noites. Mas o dia é o tempo da claridade e a noite o tempo do repouso. Portanto, não é justo que tenham a luz e o repouso eternos”. (Citado em Jacques Le Goff, A bolsa e a vida: a usura na Idade Média, p. 40-1).

A Importância da Confissão

De coletiva e pública, excepcional e reservada aos pecados mais graves, a confissão se torna aurilar, da boca para o ouvido, individual e particular, universal e relativamente freqüente. O IV Concilio de Latrão (1215) marca uma grande data. Torna obrigatória a todos os cristãos – isto é, homens e mulheres – a confissão, ao menos uma vez por ano, durante a Páscoa. O penitente é obrigado a explicar seu pecado em função de sua situação familiar, social, profissional, das circunstancias e de sua motivação. [...] O penitente deve se interrogar sobre a própria conduta e suas intenções, entregar-se a um exame de consciência. [...] É o começo da modernidade psicológica. O confessor deverá fazer perguntas convenientes que o levem a conhecer seu penitente, a separar, de seu lote de pecados, os graves, mortais sem contrição nem penitencia, e os mais leves, os veniais que podem ser redimidos. Os pecadores que morrem em estado de pecado mortal irão para o lugar tradicional da morte, do castigo eterno, o Inferno. Os que morrerem carregados apenas com pecados veniais passarão um tempo mais ou menos longo de expiação num lugar novo, o Purgatório, que irão deixar depois de purificados, purgados, em troca de vida eterna, o Paraíso, o mais tardar no momento do Juízo Final. (Jacques Le Goff, A bolsa e a vida: a usura na Idade Média, p. 11-2).

A influência da Igreja na Europa Medieval

Durante a maior parte da Idade Média, a Igreja permaneceu como a instituição mais organizada e estável da Europa. Os Estados “bárbaros” constituíam-se e desapareceram sucessivamente, em virtude de guerras internas e invasões. A Igreja, ao contrário, centralizou sua administração em Roma, enquanto fazia crescer seu patrimônio e seu poder econômico por meio de doações, esmolas e isenção de impostos. No século XI foi implantado o celibato obrigatório (proibição do casamento) a todo o clero, o que impedia o surgimento de herdeiros que reivindicassem bens da Igreja. Como as leis da época não garantiam a filhos ilegítimos nenhum direito à herança, o patrimônio eclesiástico se mantinha fora do alcançados que nascessem da quebra da castidade clerical.

Não deve causar surpresa, portanto, o fato de a Igreja ter se tornado o maior proprietário rural da Europa medieval. E, se lembrarmos a importância da propriedade da terra no mundo feudal, não é difícil presumir a influência que isso proporcionava à instituição.

A Igreja sempre se empenhou na evangelização – constante divulgação de sua doutrina -, buscando sobre tudo novas conversões entre os povos pagãos (aqueles que não foram batizados).

Graças a sua influência, a Igreja chegou a ditar até regras para a economia, como a proibição da usura e da especulação. Ela impôs também o “justo preço”: todo produto deveria ser vendido a um preço que cobrisse apenas seu custo e o trabalho do produtor; tal preço seria calculado pelo Estado e pelas associações de artesãos e mercadores.

No ensino, a Igreja se tornou responsável pelas escolas – onde estudavam os filhos da nobreza e os futuros clérigos. Os estudos, sempre dirigidos por padres ou monges, se dividiam em dois níveis: o elementar (alfabetização e aritmética básica) e o superior. Este era subdividido em duas áreas: trivium (gramática, lógica e retórica) e quadrivium (música, geometria, astronomia e aritmética).

A partir do século XIII, a Igreja organizou as universidades, que, embora sujeitas a papas e reis, ganharam autonomia, e ainda na Idade Média passaram a admitir cada vez mais leigos entre seus professores. As universidades de Sorbonne (Paris), Bolonha, Salamanca, Oxford, Cambridge, Salerno, Roma, Montpellier, entre outras, surgiram durante o período medieval.

Vários aspectos da vida social na Idade Média foram igualmente regulados pela Igreja: casamentos, divórcios (por incesto, bigamia, adultério, etc.), divisão de heranças, definição das obrigações dos casais, registros paroquiais de nascimento (com o batismo), matrimônios, falecimentos, entre outros. Pertenciam à Igreja – que possuía recursos financeiros para isso – vários orfanatos, hospitais, asilos para loucos e leprosos.

No que se refere à política, a Igreja passou a legitimar o poder de reis e imperadores – o que era simbolizado na coroação e na unção deles pelo papa -, criando até mesmo teorias para explicá-lo. Entre essas a mais difundida foi a dos “dois gládios” (gládio quer dizer espada), desenvolvida sobretudo no pontificado de Gregório VII (1073-1085). Segundo ela, o poder dos reis (gládio temporal) governava os corpos, enquanto o poder do papa (gládio espiritual) governava as almas. Ora, pela doutrina cristã, a alma era mais importante do que o corpo, logo o poder da Igreja era superior aos soberanos. Estes estavam sujeitos ao julgamento do sumo pontífice, exatamente por serem inferiores a ele.

Não é fácil imaginar o que a excomunhão – ou seja, a expulsão da Igreja, decretada apenas pelo papa, poderia significar na sociedade medieval, onde ser cristão representava o único meio de garantir algum direito. Frequentemente os papas usaram a excomunhão como arma política contra reis e imperadores, com o fim de submetê-los e desacreditá-los diante de seus súditos. Afinal, nenhum vassalo tinha a obrigação de obedecer a um soberano excomungado.

As Mulheres da Idade média

É difícil sustentar a hipótese de uma marginalização generalizada da mulher na Idade Média. O casamento, tornando-se responsável pela reprodução biológica da família, garantia-lhe papel de relevo na estabilidade da ordem social. Esta integração tinha, contudo, os seus limites. Juridicamente despersonalizada, esteve reduzida ao meio familiar e domestico. Reproduzia biologicamente os homens que iriam continuar a dirigir a sociedade.

As mulheres desempenharam funções importantes na sociedade medieval. As camponesas auxiliam suas famílias nas tarefas agrícolas cotidianas, enquanto as pertencentes às famílias nobres se encarregavam da tecelagem e da organização da casa, orientando o trabalho das servas. Muitas eram artesãs: nos grandes feudos da Alta Idade Média existiam oficinas de produtos como pentes, cosméticos, sabão e vestuário com mão-de-obra inteiramente feminina. Mas todas elas, desde as servas até as mulheres da alta nobreza, estavam submetidas a seus pais e maridos. E a Igreja justificava e favorecia tal dominação, mostrando-se totalmente hostil ao sexo feminino. Alguns teólogos chegavam a afirmar que a mulher era a maior prova da existência do diabo. 

sábado, 24 de setembro de 2011

LINKS ÚTEIS - HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL


Dois professores dialogando
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16. Book da Editora Mandruvá (artigos de História Medieval)
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terça-feira, 6 de setembro de 2011

A visão Renascentista da Idade Média

O que devemos entender, afinal de contas, quando dizemos "Idade Média"? Esse termo refere-se a uma divisão do tempo que engloba praticamente 1.000 anos de história do continente europeu. Essa classificação para o período - "Média" - foi uma forma de os homens dos séculos 14 e 15, dos reinos italianos, mostrarem que eram inovadores, modernos, transformadores.

Quanto à criação da expressão Idade das Trevas, criada pelos homens da Renascença na tentativa de delimitar o período intermediário entre a brilhante cultura da Antiguidade Clássica e o movimento que levou os europeus a fazerem renascer os valores dessa cultura, além de expressar o conflito entre a razão e a tradição. Para o autor, a “Idade Média” representou para os renascentistas uma “interrupção no progresso humano inaugurado pelos gregos e romanos” e por isso “os séculos “medievais” eram vistos como de barbárie, ignorância e de superstição.

Os iluministas se baseavam na ideia de que a humanidade caminharia no sentido do progresso, da liberdade e da busca pela felicidade, correspondendo a uma autêntica revolução da mentalidade no século 18. Anticlerical e antiaristocrático menosprezavam a Idade Média, vista como momento áureo da nobreza e do clero.

Esses homens - pintores, artistas e pensadores do chamado Renascimento - achavam que estavam rompendo com um período culturalmente atrasado do mundo ocidental, dominado pelo pensamento da Igreja católica. Assim, os renascentistas classificavam-se como "modernos" e acreditavam que estavam fazendo renascer o esplendor das culturas grega e romana da Antigüidade.

Tal classificação, na verdade, é uma simplificação preconceituosa, pois ao tentar ordenar, estigmatiza uma cultura como inferior a outra e resume a história de diversos povos que viviam na Europa como uma só história.

A própria expressão “Idade Média” carrega consigo um valor depreciativo, na verdade, ela remeteria à ideia de um período histórico intermediário, sem grande importância e até mesmo marcado por uma certa mediocridade. Assim, sua escolha para designar o período localizado “entre a Antiguidade Clássica e o próprio século XVI” revela a visão dos intelectuais humanistas da época, para os quais era um “período de trevas".

A IDADE MÉDIA - O BERÇO DA MODERNIDADE

Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes. Assim, vemos melhor e mais longe do que eles, não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura mais alta, mas porque eles nos elevam até o nível de toda a sua gigantesca altura...”

Bernardo de Chartres



O conceito de Idade Média como “Idade das Trevas”, em oposição ao Renascimento e à Antigüidade, foi forjado sobretudo no século XIX pelos historiadores liberais, segundo o qual a Idade Média teria interrompido o progresso do conhecimento e da cultura do homem, que seriam retomados mais tarde no século XVI. Felizmente, este conceito vem sendo desmistificado por diversos estudiosos. Seguindo a teoria de Toynbee, os movimentos culturais podem estar ligados por uma relação de gerações, de tal modo que uma cultura seja filha da outra. Esta é relação existente entre a Antigüidade, a Idade Média e a Cultura Ocidental Moderna. A idéia de Idade Média como uma época que esqueceu os antigos não se fundamenta e, na verdade, temos a Idade Média como filha da Antigüidade e berço do Renascimento e, enfim, do nosso mundo ocidental.

 Portanto não é possível estudar a Idade Média se nos limitarmos a (pre) conceitos criados a posteriori, pois nela encontramos elementos cuja história e significado só se encontram em períodos mais antigos.

O medievo bebe na fonte dos antigos mas, não se contentando com o paladar, altera-lhe o sabor a seu gosto. Estamos falando de uma nova utilização dos antigos (entendidos como toda a cultura antiga, não somente a clássica), que alguns chamariam supostamente de imitação servil, mas que, aos olhos do homem da época é algo completamente novo, moderno. A partir do legado da tardia Antigüidade latina, a Idade Média adotou e transformou seus elementos, construindo uma imagem própria dos antigos: “a Antigüidade está presente na Idade Média como recepção e transmutação”.

Os medievos procuraram traduzir, estudar e entender os antigos, pois, para refutar suas doutrinas foi preciso conhecê-las. Eles acreditavam que a filosofia antiga (sobretudo Aristóteles e Platão) tinha de ser reutilizada, à luz de uma nova interpretação cristã, como nos diz neste trecho o inglês Daniel de Morley, reportando-se ao bispo de Norwich:

“Que ninguém se aflija se, tratando da criação do mundo eu invocar o testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos, pois, ainda que estes não figurem entre os fiéis, algumas de suas palavras, a partir do momento que estejam cheias de fé, devem ser incorporadas ao nosso ensino.”
 

                 Vejamos a reinterpretação que Santo Agostinho, um dos expoentes da Idade Média, faz de Platão e Aristóteles, ilustrando com o capítulo 8 do livro VI das Confissões. Nele, Alípio – ex-aluno e futuro amigo de Agostinho – recusa-se a assistir às lutas de gladiadores, mas acaba sendo levado “amigavelmente” à força pelos amigos. Para se proteger contra a massificação e a catarse daquele espetáculo sangrento e cruel, o jovem Alípio conta com seu esclarecimento sobre o que é o bem e o mal, pois o homem instruído e consciente seria capaz de se proteger contra tais males: “Por arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis fazer com que o espírito e os olhos prestem atenção aos espetáculos? Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos espetáculos”. Ledo engano: o homem esclarecido, consciente de si mesmo se entrega tanto mais facilmente e com tanto mais ardor àquela massificação. Vamos nos apoiar na brilhante análise que Erich Auerbach faz desse texto para mostrar como a Antigüidade é reutilizada pelo pensador cristão. A autoconsciência individualista e orgulhosa é derrubada: “não se trata de um Alípio qualquer, mas de toda a cultura racional e individualista da Antigüidade clássica: Platão e Aristóteles, os estóicos e os epicuristas”. A derrocada é tanto maior quanto maior a suposta consciência: o homem consciente se converte em massa e vai além, conduz a massa. Essa mudança radical, como aponta também Auerbach, é cristã, sendo a derrota a primeira etapa da redenção em Deus: “O Cristianismo dispõe, na sua luta contra a embriaguez mágica, de outras armas que não as da elevada cultura racional e individualista da Antigüidade”. Se por um lado, Agostinho reutiliza os antigos, seu estilo de texto é“totalmente anticlássico”, tanto no tom humanamente dramático como na forma, que lembra passagens bíblicas; Agostinho se utiliza dos clássicos, mas não se deixa dominar por ele, como aponta Auerbach.

Dante é outro “produto” da Antigüidade, e bebe dessa fonte para construir o maior painel da época medieval, sua Divina Comédia. Na viagem de Dante ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso –conduzido pelo altíssimo poeta Virgílio, a mentalidade, a cultura, a sociedade, o amor são questionados em conversas travadas com inúmeros personagens. A Divina Comédia também é uma censura à época, escrita, segundo o poeta, em “linguagem vulgar que as mulheres utilizavam em suas conversações diárias”. No canto IV do Inferno, Dante e Virgílio se encontram com os antigos: Homero, Horácio, Ovídio, Lucano e depois Estácio. Esse encontro representa a aceitação de Dante no círculo dos poetas antigos (a bella scuola) e a sanção de sua missão poética. Assim, só podemos compreender Dante, se estudarmos Virgílio e, antes deste, Homero:

“O encontro de Dante com a bella scuola autoriza a incorporação da épica latina na poesia universal cristã. Compreende um lugar ideal, onde ficou reservado um nicho para Homero, e onde se acham reunidas todas as grandes figuras do Ocidente (...) Nele deita raízes a Divina Comédia. É a velha estrada da Antigüidade que conduz ao Mundo Moderno.”


             Ecoam também em Giovani Bocaccio, autor do Decameron, os reflexos dos antigos. Na medida em que ambos rompem com uma estrutura rígida coercitiva, Eurípides e Bocaccio são precursores da nossa modernidade. Aquele desmistificando o esquema coercitivo-aristocrático das tragédias, colocando o povo como personagem principal e celebrando o indivíduo. Bocaccio, grande admirador e seguidor de Dante, popularizando a literatura e escandalizando com suas novelas, escritas em língua vulgar, em que jovens fogem da peste e se refugiam nos montes, visualizando novos horizontes (fuga do passado, rumo a uma nova era); temos, então, uma transfiguração do espírito revolucionário de Eurípides. Além disso, ambos são precursores do romance burguês moderno.

Podemos citar inúmeros outros exemplos, mas limitemo-nos a expor mais dois: o primeiro intelectual, tal como concebemos, nasceu na Idade Média: Abelardo, cristão nutrido na filosofia antiga que reclama a aliança entre a razão e a fé, o primeiro professor, para usar as expressões de Le Goff; e as Universidades, centro da nossa intelligentsia e instituição de pesquisa por excelência, foram criadas nessa época.

Há que se negar as oposições Medievalidade-Antigüidade e Medievalidade-Modernidade pois não se pode ser moderno se não se estuda os antigos. Isso vale tanto para a Idade Média em relação à Antigüidade como para o nosso mundo com relação à Idade Média. É a partir do legado da Idade Média que os clássicos chegam aos renascentistas e, depois, até nós. Dizemos que nosso mundo atual é fruto do pensamento clássico greco-romano. Na verdade, não nos damos conta que somos filhos do pensamento medieval, no qual os conceitos clássicos passaram pelo filtro da doutrina cristã:

“falamos idiomas surgidos naquela época, temos ou pretendemos ter governos representativos, consideramos indispensáveis instituições como julgamento por júri e habeas corpus, alcançamos maior eficiência com o sistema bancário, a contabilidade e o relógio mecânico, cuidamos do corpo com hospitais e óculos, alimentamos melhor o espírito graças à notação musical, à imprensa e às universidades, embelezamos a vida com a música polifônica e os romances”.

Temos de tentar compreender a Idade Média, então, a partir dos olhos de uma pessoa daquela época, isto é, sem preconceitos, reconhecendo sua modernidade e seu rico legado cultural. Conhecer a Idade Média, matriz da civilização ocidental cristã, enfim, é compreender melhor o nosso século.

Referências Bibliográficas

AUERBACH, Erich. Mimesis – A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998.

CURTIUS, Ernst R. Literatura Europea y Edad Media Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.

FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média – Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1996.

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

LE GOFF, JACQUES. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1995.

LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999, Coleção Os Pensadores